Quem se depara com o nome repleto de consoantes do neurocientista Stevens Kastrup Rehen se surpreende quando ele declara sua origem carioquíssima. Criado entre os bairros da Tijuca e Andaraí, torcedor do Fluminense e pai de dois filhos, Rehen é um dos pesquisadores mais respeitados do país, especializado no estudo das células-tronco.
Ainda no campo das surpresas, Rehen acumula mais de 10.000 seguidores nas redes sociais, índice mais compatível com os chamados influenciadores digitais do que um cientista, que traz no currículo o feito de ter descoberto, há dois anos, a conexão entre o vírus zika e a microcefalia.
No comando da área de pesquisa básica do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) e professor titular do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rehen costuma ser ouvido com muita atenção e não se furta a dar suas pipetadas em assuntos como a importância da divulgação científica e a atual cultura de financiamento à pesquisa no Brasil — segundo ele mais afeita à prestação de contas do que aos resultados.
Aos 47 anos, ele não esconde que considera o atual momento da ciência brasileira preocupante, mas é um otimista e acha que a turbulência vai passar. “Apesar de pesares, eu me considero um cientista feliz no Brasil”, resumiu ele, durante entrevista em seu laboratório no IDOR. Confira abaixo, alguns trechos da conversa em que falou sobre sua trajetória, suas pesquisas, o cenário científico atual e o futuro.
Stevens Rehen no laboratório instalado no IDOR:
em defesa de novos modelos de financiamento para pesquisa
Suicídio de células
"Sempre tive interesse em estudar o cérebro. Talvez esteja entre as duas principais curiosidades que todo ser humano tem — a outra é se um dia vamos encontrar vida extraterrestre. Assim que eu entrei na faculdade, no início da década de 1990, fui recrutado para estagiar no laboratório do Professor Rafael Linden no Instituto de Biofísica da UFRJ. Rafael pesquisava um fenômeno conhecido como morte celular programada, durante a formação do sistema nervoso. Eu tinha acabado de perder meu avô materno, e foi educativo naquela época estudar o fenômeno da morte (celular) sendo tão importante para a formação do cérebro e da própria vida. Nós tentávamos entender como as células são eliminadas naturalmente durante a formação do cérebro. Algo semelhante ao excedente de massa que é descartado na produção de uma escultura de argila por exemplo. Ainda no período de graduação em Ciências Biológicas na UFRJ, publicamos artigos científicos sobre o tema. Um deles, que foi publicado na revista Development, e descrevia fenômenos associados à morte celular na formação da retina. Descobrimos que a síntese de proteínas é crucial para ativar o mecanismo de morte celular programada. Ou seja, as células produziam proteínas para se matar, em uma espécie de suicídio."
As meninas do “Arquivo X”
"Depois de dez anos trabalhando nessa linha de pesquisa — durante a graduação, no mestrado e no doutorado — buscava entender melhor como esse negócio funcionava, quais seriam as proteínas e os genes envolvidos. Resolvi ir atrás de quem tinha as ferramentas mais sofisticadas à época e me candidatei para pesquisar em três laboratórios norte-americanos: em Cleveland, em Stanford e na Universidade de San Diego (UCSD). Fui aprovado nos três, mas escolhi a UCSD. Tive uma sintonia muito grande com o responsável pelo laboratório e que viria a ser meu chefe nos seis anos seguintes: Jerold Chun, um havaiano muito gente fina. Juntos, passamos a buscar entender o que levaria células do cérebro a se matarem e, de forma ambiciosa, tentar provar que no sistema nervoso haveria um processo de geração de diversidade equivalente ao do sistema imunológico, uma descoberta feita pelo japonês Susumu Tonegawa que lhe rendeu o Nobel de Medicina e Fisiologia de 1987. Aos 26 anos, eu estava animado com a possibilidade de provar que algo parecido com a recombinação não homóloga aconteceria dentro do sistema nervoso. Me lembro de um dia em que cheguei em casa, vindo do laboratório, por volta das 11 horas da noite, esquentei uma pizza e liguei a televisão. Estava passando um episódio da série Arquivo X sobre duas meninas — uma boa e uma má. A conclusão da trama era que elas tinham diferentes níveis de aneuplodia, a variação do número de cromossomos. No laboratório, nós estávamos justamente encontrando níveis alterados de aneuploidia no cérebro! A ficção me estimulou a perseguir a possibilidade da variação de cromossomos no sistema nervoso ter implicações, talvez, para o próprio funcionamento do cérebro humano! Formulamos a hipótese que o cérebro é um mosaico com células aneuploides que podem interferir em seu funcionamento, e começamos então a usar técnicas que nunca tinham sido aplicadas no órgão, como a contagem de cromossomos através de citogenética molecular. Descobrimos que as células do cérebro não têm necessariamente 46 cromossomos, mesmo em pessoas normais e que essas alterações são ainda mais marcantes em pacientes com Alzheimer. Publicamos esses resultados, o que gerou grande impacto na comunidade científica. Era uma proposta completamente fora da caixa."
Aulas em troca de mais conhecimento
"No mesmo período, participei de outra descoberta importante, publicada na revista Nature Neuroscience, demonstramos que um fosfolipídeo chamado LPA era capaz de formar giros e sulcos no cérebro de camundongos. Nessa mesma época, começava nos Estados Unidos a ideia de investir de forma robusta nas pesquisas com células-tronco. Pensei: ‘Vou começar a estudar essas células pois são um super modelo para entender a formação do cérebro.’ O National Institutes of Health (NIH) estava oferecendo um curso caríssimo sobre o assunto numa cidade chamada Irvine, que fica a uma hora de onde eu morava. Comentei com o meu chefe, mas ele disse que o nosso laboratório não pretendia trabalhar com o assunto nem tinha recursos para me bancar. Eu liguei para os organizadores em Irvine e disse: ‘Olha, eu não tenho grana para fazer o curso, mas sei aplicar uma técnica de citogenética molecular que vocês vão adorar.’ Eu consegui custear minha participação dando duas aulas no próprio curso. A experiência abriu a minha cabeça: eu aprendi a trabalhar com células-tronco pluripotentes, que são a base das minhas pesquisas até hoje."
Reprodução de células-tronco: mecanismo suicida
Células-tronco clandestinas
"Em 2005, eu e minha esposa estávamos voltando ao Brasil. Trouxe na mudança um tanque com células-tronco congeladas em nitrogênio líquido. Estamos falando de quatro anos após o 11 de setembro. O recipiente parecia uma bomba, mas encontrei um documento da associação das empresas áreas dos Estados Unidos comprovando que o equipamento podia ser transportado com segurança. Mesmo assim fiquei muito preocupado, temia perder as amostras, mas ao mesmo tempo era impossível trazê-las de outra forma, tal a complexidade do processo. Felizmente no final deu tudo certo."
Um banheiro para chamar de seu… laboratório
"Assim que cheguei ao Rio, havia pouco espaço físico para eu trabalhar — o que é normal, vista a competição por espaço físico no Centro de Ciências da Saúde da UFRJ. Foi quando tive um insight ao entrar no banheiro do departamento. Procurei o Professor Roberto Lent, diretor do Instituto de Ciências Biomédicas à época, e falei: “Esse banheiro é grande. Será que eu não poderia usar metade dele para fazer o meu escritório?”. O assunto foi levado à congregação, que autorizou a obra. Pouco tempo depois, a Finep e o BNDES abriram um edital, via Ministério da Saúde, para a criação de centros de terapia celular. Submeti uma proposta juntamente com a Professora da USP, Lygia da Veiga Pereira e fomos agraciados. Foi quando nos mudamos para o quarto andar do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, onde instalamos o Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE), em 2009."
Casa nova na Copa
"Com o tempo percebemos que precisaríamos de novas instalações para pesquisa, porque apesar de ser excelente, o laboratório tinha limitações para os estudos que pretendíamos fazer. Comecei então a procurar alternativas para me instalar. Foi quando dei carona para a Professora Fernanda Tovar Moll, a caminho de um congresso em Itaipava (RJ). Comentei com Fernanda: “Obtive recursos para expandir as atividades do meu laboratório, mas o espaço está se deteriorando”. Na segunda-feira seguinte, fui até o Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) e, baseados num convênio já existente entre a UFRJ e o IDOR consideramos a possibilidade levar o LaNCE para lá. Na Copa do Mundo de 2014 o laboratório começou a funcionar no novo espaço e desde então utilizo células-tronco para estudar psicodélicos, um tipo de epilepsia chamada síndrome de Dravet e o vírus zika (o trabalho do grupo de Stevens foi o primeiro a associar a epidemia de zika à microcefalia)."
Descompasso público-privado
"A pesquisa básica depende de financiamento público em qualquer lugar do mundo. Nos Estados Unidos, há agências do governo que financiam grande parte da pesquisa básica de lá. Ao mesmo tempo, o período na Califórnia me expôs ao empreendedorismo aplicado às ciências biomédicas. Quando retornei ao Brasil fui convidado a participar da criação da Hygeia Biotecnologia Aplicada e foi uma experiência em tanto.Na mesma época fui procurado pela L’Oreal, com a encomenda por neurônios sensoriais para testes de cosméticos. Recentemente, publicamos trabalhos científicos nessa linha. Nessas rodadas de financiamento privado, fui percebendo como a universidade tem dificuldade de internalizar recursos de empresas em seu próprio benefício. É necessária maior flexibilidade na relação da academia com as empresas. Nos Estados Unidos, as duas fontes coexistem de forma harmoniosa e todos ganham. No Brasil, ainda é um desafio."
Fim da torre de marfim da Ciência
"A divulgação científica foi fundamental na minha escolha em ser cientista. Quando eu tinha uns 14 anos e graças a revistas como Superinteressante e Ciência Hoje eu pude entender melhor o que era o universo da ciência. As revistas científicas preenchiam uma lacuna importantíssima do ensino fundamental. Hoje em dia, com as redes sociais, a questão ganhou novos contornos. Li recentemente uma pesquisa na Science mostrando o impacto social dos cientistas através do Twitter. O estudo indica que cientistas com mais de 2500 seguidores atingem um número significativo de público leigo e jornalistas, não ficando restritos exclusivamente ao universo de estudantes e pares. Esse desafio de sair de nossa torre de marfim é muito evidente no mundo virtual (Stevens é um dos cientistas mais populares do Brasil: tem cerca de 3 mil seguidores no Twitter e 10 mil no Facebook. Ele ainda tem um blog no portal UOL, produz o podcast Papo de Cientista, é colunista da Scientific American Brasil, consultor do programa Conversa com Bial, da TV Globo, e realiza palestras no Brasil e no exterior). Não podemos obrigar todos os cientistas a serem divulgadores, mas precisamos dar ferramentas para os que desejam sê-lo. Esse trabalho é importante para mostrarmos para a sociedade o que fazemos, já que boa parte dos investimentos em ciência é público. Tem de haver clareza do destino final desses recursos."
Menos planilha, mais resultado
"Quando presto contas sobre um projeto desenvolvido com recursos de fontes internacionais, os avaliadores não querem saber se eu comprei duas pipetas ou paguei uma ida a um congresso. Eles querem saber o que fiz de bom, quais resultados científicos alcancei. No Brasil, muitas vezes o cientista não necessariamente se preocupa em entregar o que prometeu, mas, sim, em apresentar corretamente a planilha de gastos. Estamos sendo mais treinados para fazer relatórios burocráticos do que descobrir coisas importantes. A ciência acaba sendo o de menos, fica em segundo plano. Não damos também oportunidades a jovens talentosos, que ainda não são pesquisadores do CNPq. É uma questão cultural que precisa ser mudada."
O cientista e o jogador de futebol
“O Brasil precisa buscar novos caminhos para a ciência. Não pode haver insegurança e instabilidade causadas por planos econômicos que não priorizem as áreas de ciência e educação. Que se planeje teto de gastos mas com sensibilidade para áreas estratégicas. Se não houver essa clareza, não sairemos do lugar. Quanto mais houver cientistas ou técnicos ajudando na formulação de políticas públicas, maiores são as nossas chances de dar um salto de qualidade e perspectiva de futuro baseada no desenvolvimento. Além disso, precisamos preparar melhor os jovens que estão ingressando na área científica. Temos que mostrar que há outras oportunidades além da carreira acadêmica. É preciso haver disciplinas de empreendedorismo, inteligência emocional, design… Quando você é exposto ao método científico, você aprende a pensar de outra forma. Isso é útil não só ao trabalho em laboratório, mas a outras oportunidades de emprego. Estou quase com 50 anos de idade. Já passei por diversos momentos de crise. Obviamente, é cansativo viver em ciclos de investimento e cortes, mas a nossa carreira é uma das mais libertadoras que existe. Temos a liberdade dos jogadores de futebol, podemos trabalhar no Brasil e no mundo com uma facilidade maior do que outras profissões. Sem contar que ganhar para ter ideias e descobrir soluções é extremamente gratificante. O momento é crítico, depende da nossa capacidade de comunicar para a sociedade e para quem cria as leis do país a importância de investir em ciência. De todo modo, vai passar, tem que passar. Eu me considero um cientista feliz no Brasil."